O Colóquio Florbela Espanca quer reunir em Vila Viçosa, a terra natal da escritora portuguesa, um número expressivo de estudiosos da sua obra, acolhendo trabalhos sobre quaisquer das suas vertentes (poesia, ficção, diário, epistolografia e outros) ou das suas repercussões (fortuna crítica, biografias, edições, documentos, acervos/espólios, traduções, testemunhos, produções ficcionais a respeito, etc). Una e múltipla, mulher e musa, olhos perdidos na charneca que, em flor, a encarna na sua derradeira versão, a esfinge de Florbela aguarda (desde a sua morada) o nosso permanente esforço de decifrá-la.

– Maria Lúcia Dal Farra (Universidade Federal do Sergipe – CNPq)

 

 

 

 

Resumos das conferências e comunicações apresentadas

no Colóquio Internacional em Homenagem a Florbela Espanca

Florbela Espanca. O Espólio de um Mito.

Anamarija Marinovic (CLEPUL – Universidade de Lisboa):

Eu quero amar, amar perdidamente: motivos do amor e do medo na poesia de Florbela Espanca

Nesta comunicação serão analisados os dois volumes de poesia de Florbela Espanca entre 1903 e 1917, tal como a edição de Sonetos. Concentrar-nos-emos apenas na sua obra poética, discursando para os efeitos deste trabalho do seu diário e de volumes de contos. Sendo certo que o motivo mais importante na poesia desta poetisa é o amor, observar-se-á qual é o lugar deste sentimento em relação ao medo. Uma vez que José Régio situou a obra de Florbela entre o Decadentismo do fim do século e o neo-romantismo, parece natural que na sua poesia predomine um imaginário poético claramente romântico: a noite, as ruínas, o luar, o cemitério. Em termos temáticos o amor para esta poetisa está estreitamente relacionado com mágoas, angústia, nostalgia dos tempos passados, o sonho, a transitoriedade, a fugacidade da felicidade; amor como servidão e entrega absoluta à pessoa amada, a amargura. Por todas estas razões é lógico que o amor se relaciona estreitamente com o medo: medo da perda, da rejeição, do sofrimento. Será inevitável analisar-se um pouco a sua relação com o irmão, que para muitos críticos foi uma relação complexa e controversa e tentar-se-á demonstrar que a poesia de Florbela Espanca não encobre nenhuma paixão incestuosa, que conduziria a poetisa à repressão do sentimento amoroso e do medo. Na poesia de Florbela não se revela preocupação com as questões sociais ou políticas, os seus temas dizem respeito aos seus estados de alma e sentimentos, pelo qual muitas vezes é possível confundirem-se a voz da poetisa com a do sujeito lírico dos seus poemas, o que dava motivo a distintas interpretações mais ou menos correctas da sua obra. O seu desejo de “amar perdidamente”, abrangendo a plenitude deste sentimento, foi muitas vezes criticado pelos seus contemporâneos, porque parecia que essa atitude ofendia a prática da boa moral e do comportamento sexual aprovado na época. O amor e o medo na poesia de Florbela Espanca não se reduzem apenas a motivos clichés presentes em muitos escritores do seu tempo, parecem motivos genuínos, vividos, sentidos, que se entrelaçam habilmente com os motivos da condição feminina, desilusões, raivas e todos os outros sentimentos que acompanham o amor e o medo.

 

 

António Carlos Cortez (CLEPUL – Universidade de Lisboa):

Rever Florbela: alguns aspectos sobre a sua poética

No espaço poético português da primeira metade do século XX é com Florbela Espanca (1895-1930) que o soneto se revitaliza, forma consagrada desde Camões a Antero de Quental. Com a autora de Livro de Mágoas (1919), atinge essa forma uma excepcionalidade temática e estilística que acompanha a figuração de uma identidade poética quase heteronímica, a da «poetisa eleita», reflexo de uma identidade em processo de aluimento. Se o «eu» é, na Modernidade estética, um outro «eu», temos que em Florbela Espanca essa oscilação entre «eus» ocorre em terreno movediço. Situada entre um neo-romantismo geracional e certas aquisições estilísticas do parnasianismo e do simbolismo, eis que se torna inescapável rever Florbela nos seus temas obsidiantes, na sua linguagem feita de fulgurações amorosas, apontando uma realidade do corpo rara na poesia portuguesa. Tanto mais rara quanto o corpo é, em simultâneo, corpo textual em que se constrói uma poética isolada no contexto da poesia moderna portuguesa e corpo concreta e eroticamente desejado, vivido entre culpa, queda e aspiração amante.

 

 

Carlos J.F. Jorge (Universidade de Évora):

As Lápides, as Preces e as Insígnias – Elegias, Apóstrofes e outras Artes do Epitáfio na Poesia de Florbela Espanca

Cercada por mitos que a etiquetam, Florbela é, intermitentemente, evocada pelo emblema que foi, como mulher, na Lusitânia, reprimida, e a poetisa desenquadrada e sem cânone. O primeiro mito não pesa apenas no convite ao esquecimento da escrita, sobretudo da lírica, já que a diarística e narrativa parecem ajudar a construir a imagem da pessoa com quem nos envolvemos, ao passar na rua, por ela ou pela sua memória: pesa no quadro hermenêutico que lhe criamos e nos horizontes (sem expectativas) com que lhe cerceamos os sentidos. O segundo mito, reiteradamente desconjuntado por novas leituras, nunca se poderá desmontar inteiramente, porque Florbela é, insistente e resumidamente, a que “não se integrou no modernismo” circundante e que, dos modelos clássicos, “retirou apenas a moldura restritiva do soneto, sem ter renovado a sua grandeza criativa”. Contra este quadro irá a nossa intervenção actual, com a qual pretendemos reforçar argumentos em torno da alta qualidade e rigor na elaboração discursiva que a poetisa atinge, no trabalhar o modelo estrófico do soneto, segundo a disposição extremamente inovadora dos tropos, pelo cruzar de duas figuras enunciativas fundamentais: a elegia e a apóstrofe. Presumimos, basicamente, que a poesia de Florbela recolhida num só livro, que se tem designado, laconicamente, por Sonetos, sendo a que mais percorre a leitura, a atenção e a memória dos seus receptores (e, eventualmente, destinatários), estabelece um sortilégio de apelo que não passa, sobretudo, pelo conteúdo da mensagem, ou pelo estatuto de referencialidade vivencial que, daí, possa ser presumida. Emerge, sim, dos procedimentos poéticos que elabora, persistente e variadamente, numa recursividade que gera efeitos de vertigem pela omnipresença de um dispositivo enunciativo que funciona como o retorno da (quase) mesma mensagem a um(a) destinatário/a marcado por um destino. Tudo se passa como se a entidade apostrofada, um poeta, um destino poético, fosse portador de uma palavra adereço, uma insígnia MORRERÁS, reiterada, desdobradamente, em epitáfios.

 

 

Christopher Gerry (Investigador Colaborador CEL, UTAD, Vila Real):

A formiga e o astro. Influências mútuas entre os valores, os contos e as traduções de Florbela Espanca

[Evocar] uma frase, um sentido, a reunião de duas palavras, uma maneira de dizer que eu já tivesse lido ou ouvido, é natural, e disso nem os maiores poetas se livram, quanto mais eu que ao pé deles faço a figura duma formiga olhando um astro.

[Carta de Florbela a Madame Carvalho, Directora do Suplemento Modas e Bordados do Jornal O Século, 23.04.1916]

Legitimamente, a obra lírica de Florbela Espanca faz parte do cânone literário nacional. No entanto, mesmo em Portugal, a sua obra em prosa – composta principalmente pelas duas colectâneas O dominó preto e As máscaras do destino – permanece quase ignorada. No estrangeiro, muitos dos seus contos e a maior parte da sua poesia ainda ficam por traduzir. Por ser inacessível ao leitor anglófono, resolvi traduzir os contos de Florbela para o inglês – a minha primeira incursão no mundo de tradução literária e a minha primeira experiência da cosmologia complexa da área dos “estudos de tradução”. Porém, apesar de ter vertido 10 romances estrangeiros para a língua portuguesa nos derradeiros anos da sua vida, as traduções de Florbela são praticamente desconhecidas. Reconhecendo que os seus contos têm um teor extremamente autobiográfico, resolvi sondar nesta comunicação em que medida estas traduções também evidenciassem ressonâncias autobiográficas e até que ponto a produção contista de Florbela, realizada contemporaneamente, exibissem ecos imagéticos dos referidos romances. As conclusões aqui apresentadas são fruto de uma leitura pormenorizada e paralela das versões originais e portuguesas de 4 dos 9 romances franceses traduzidos por ela. Na primeira parte da comunicação apresenta-se e contextualiza-se sinteticamente a obra contista de Florbela, bem como os romances que traduziu. Na segunda parte exemplifica-se algumas das influências mútuas entre a vida e valores de Florbela, os seus contos, e as suas traduções.

 

 

Cid Ottoni Bylaardt (Univ. Federal do Ceará):

Reflexões sobre Memória, Esquecimento e Verdade num soneto de Florbela d’Alma

No soneto “Esquecimento”, de Florbela d’Alma, a linguagem poética se impõe sobre o objeto, que não existe mais, desapareceu nas trevas, em seu lugar temos a linguagem poética. Há perda, saudade, mas o ser se dissipou; restaram as palavras do poema, que lembra doidamente o que se esqueceu. Lembrar doidamente é lembrar sem razão, sem ordem, é recusar a concordância do conhecimento com seu referente, particularmente se o objeto do lembrar é “o que esquecemos”. A poesia, nessa lembrança doida do que não existe, nessa ilusão e nessa incerteza, funda uma verdade, instaura, oferta, começa o que sempre começa na poesia, o que é sempre poesia. A arte é assim um espaço de metamorfose, que faz do esquecimento não uma função, mas um evento, ou seja, algo que não está a serviço de um poder de dizer, uma mestria, uma prática feliz da memória. Filosoficamente, o esquecimento contém em si a propriedade de estabelecer algum tipo de ligação entre os seres e as coisas esquecidas, que faz com que o esquecido retorne de alguma forma, as mais das vezes idealizada, enriquecida pelo próprio esquecimento. O esquecimento, portanto, é uma função importante do viver, porque nos ajuda a compor o discurso, hierarquizar os elementos, priorizar determinadas informações, ordenar, classificar, completar… Não obstante, o esquecimento na poesia não é uma função, e sim um evento. O que na memória do cotidiano funciona como mediação entre o ser e as coisas torna-se na arte o afastamento, a separação patrocinada pela memória do esquecimento, o que não ata nem desata, um movimento estéril, um vaivém incessante em que quem esquece o faz sem a possibilidade de esquecer, porque não há o que esquecer: o locutor está suspenso entre a memória e a ausência de memória. É a estranha experiência de esquecer o esquecido sem esquecimento, ou “de lembrar doidamente o que esquecemos”. Nessa migração interior, a linguagem literária aponta repentinamente para a coisa esquecida e para o esquecimento, afastamento desmedido onde se torna possível encontrar o espaço da metamorfose, o espaço de preservação do que se esconde, que protege os seres daquilo que eles são, e que protege a arte e a poesia do habitual. Na noite da escritura, que é a noite do esquecimento, não se pode dormir, sofre-se de insônia incurável. Por um lado, ela não afirma sua verdade; por outro, não mente; não há sinceridade nem fraude, inexistem parâmetros de aferição. Aí a morte não se encontra como fim; esquecimento e memória se fundem e ao mesmo tempo se repelem, um tentando sobrepor-se ao outro, e simultaneamente convivendo lado a lado, e sobre a memória e o esquecimento comparece a invenção a preencher lacunas e a criar outras; tudo é angústia, incompletude, falta. O esquecimento de que trata o soneto de Florbela de Alma é o imemorial: não se trata de recuperar imperfeitamente, ou de qualquer maneira que seja, algo que já ocorreu, mas de acessar algo que nunca aconteceu, de trazer o não-ocorrido à linguagem poética. É nostalgia, presságio da inconsciência, distração, estremecimento, escritura do desastre e desastre da escritura. O imemorial, então, é o esquecimento inesquecível porque é linguagem, é palavra. Há uma promessa formulada linguisticamente, tão lúcida que provoca nossa distração, tão completa, verdadeira, soberana, que é incompreensível, e que compõe a beleza da poesia, e seu desastre.

 

 

Cláudia Simone Silva de Sousa (Univ. Federal do Rio Grande do Norte/CAPES) & Isabel Maria da Cruz Lousada (Univ. Nova de Lisboa/CESNOVA):

Florbela Espanca: convergência entre mundos

Ao ser concebida como mito, Florbela Espanca ter-se-ia (re)inventado a si própria? Ao longo do tempo, este alcance mítico pode ser observado como “espaço de fruição”, mediante as leituras promovidas pelo “prazer do texto” atemporal florbeliano. Em algum momento, a face mítica da autora, poderia implicar o mérito do seu potencial literário? Florbela Espanca, com seu estilo ímpar, imprime à sua escrita um caráter híbrido e de difícil “categorização” diante de certos parâmetros estéticos canonizados pela teoria e crítica literária. Seria este aspecto – elemento propagador da circularidade da recepção dos textos da autora portuguesa – uma espécie de eco que converge para um ser que se faz mito? Eis alguns questionamentos, aos quais buscar-se-á observar no presente trabalho, que visa lançar o olhar sobre uma figura que se inscreveu na literatura, cujo produto advém da atividade da poetisa que realizou sua obra mediante um processo vital pouco convencional para o cenário da sua época. Florbela Espanca, com estilo inovador, sobretudo diante do contexto feminino, conseguiu elaborar uma escritura que provoca, no leitor mais atento, possíveis exercícios de análises entre texto poético versus contexto histórico-social. Face ao exposto, buscar-se-á uma visão panorâmica capaz de realçar a convergência entre universos tão distintos quanto os da produção/recepção, escrita/leitura, proporcionados pela fruição dos textos de Florbela Espanca por entre mundos unidos pelo mesmo idioma. Na abordagem a realizar, Brasil e Portugal serão tomados como pontos de intersecção, ao formar pano de fundo para esse espaço de fruição. Como aporte teórico e crítico literário, buscaremos ancorar nossa pesquisa mediante norteamentos elaborados por Dominique Maingueneau, Italo Calvino, Mikhail Bakhtin, Renata Soares Junqueira, Roland Barthes, dentre outros/as.

 

Clêuma de Carvalho Magalhães (Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Piauí):

O diálogo entre a poesia florbeliana e o leitor

Este artigo apresenta uma pesquisa da recepção da obra de Florbela Espanca ao longo de sua trajetória histórica. O objetivo é examinar o diálogo que se estabelece entre a poesia florbeliana e o leitor. O estudo revela que a obra de Florbela Espanca não atende fielmente às exigências do horizonte de expectativas do público do início do século XX, e apresentase como resposta a questões que os leitores da época não estão prontos para reconhecer. A crise de identidade e a reflexão sobre a condição feminina, por exemplo, parecem passar despercebidas ou são propositalmente ignoradas pela crítica, preocupada em destacar apenas os aspectos da poesia florbeliana que se harmonizam com as expectativas dos leitores. Somente na década de quarenta, com a atuação de Jorge de Sena e José Régio, o discurso crítico, inicialmente fundamentado em pressupostos românticos, privilegiando o lado dramático e emocional e avaliando a obra com base em critérios morais, começa a ser contestado por uma leitura adotando critérios literários para afirmar o valor da produção poética de Florbela Espanca. Observamos, assim, o início de uma importante mudança no horizonte de expectativas da crítica, que resulta numa certa aproximação em relação ao horizonte da produção literária de Florbela. Esse processo, no entanto, não atinge a amplitude necessária para anular as leituras pautadas em premissas de base psicológica, que encaram a obra como reflexo consciente da personalidade da poetisa. Não podemos negar, entretanto, a existência de um novo diálogo entre a poesia florbeliana e o público de meados do século XX. A poetisa tantas vezes criticada por sua relação com escritores que representam a tradição literária, tornase, ela própria, um modelo para as novas gerações. O diálogo com a obra de Florbela Espanca, efetuado por muitos escritores desse período é principalmente de natureza intertextual. Essa afirmação é feita com base na produção dos poetas da Coleção “Germinal”, que publicam em 1950 o livro Poemas para Florbela Dalma. A celebridade que o nome de Florbela Espanca alcança é indiscutível. Entretanto, a extensa bibliografia produzida sobre a autora esteve quase sempre sob a influência da aura mitológica que envolve o seu nome e, portanto, mais preocupada com o que se acredita constituir a figura pessoal de Florbela. Somente a partir da década de oitenta, seguemse diversas avaliações de caráter analítico que se preocupam com o valor estético da produção literária da escritora, revelando valores até então ignorados. A tentativa de compreender esse novo diálogo com a obra de Florbela Espanca nos ajuda a descobrir o que essa obra tem a dizer ao leitor atual.  Uma análise do narcisismo, apontado ainda nas primeiras recensões críticas como um traço característico da poesia de Florbela, é importante nesse sentido. Visto inicialmente como extensão da própria personalidade da escritora que se confessaria completamente em seus poemas; associado ao donjuanismo e à egolatria, segundo a análise de José Régio; na atualidade, o narcisismo presente na produção de Florbela Espanca é relacionado à temática moderna da busca de identidade. A fragmentação do sujeito, a despersonalização, a angústia do “eu” diante do abismo da própria identidade, traços reiteradamente apontados na obra de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, são atualmente identificados na poesia de Florbela Espanca. Essa leitura mostra que à medida que novos fatores atuam sobre o horizonte de expectativas do público, ocorre uma mudança desse horizonte, resultando num novo processo dialógico entre texto e leitor.

 

 

Concepción Delgado Corral (Instituto Francisco Aguiar, Betanzos):

A atividade florbeliana sobre o texto literário

Florbela tem uma única vocação que é a de ser escritora. Mas também é uma escritora consciente do seu trabalho que reflete sobre a obra literária e sobre a sua própria obra oferecendo-nos uma espécie de poética ou pensamento poético e uma visão crítica não isentas de interesse. Estas reflexões aparecem de forma fragmentária em diferentes escritos: cartas, diário, contos, e principalmente nos próprios poemas transformados em autêntica metapoética onde o eu se volta sobre a própria poesia à maneira duma conversa consigo mesmo ou na procura da comunicação com o leitor. A relação que a sua obra mantém com a obra de outros autores como Anto, o poeta como um ser superior, a inspiração e o trabalho na actividade poética, a poesia como conhecimento e como comunicação, a insuficiência da linguagem, a sua condição de mulher e o papel da mulher poeta, a fortuna editorial e o desejo de publicar, a importância da quadra na tradição poética popular, a constância/inconstância na actividade poética, a preocupação pela própria obra e pela materialidade da mesma, incluindo tudo o que tem a ver com a publicação dos seus livros, desde o tipo de grafia até a disposição dos poemas na página, o lugar que devem ocupar no livro ao qual pertencem e o formato deste, e também a venda e a distribuição. Todas estas reflexões constituem uma ‘a título de’ Poética florbeliana. É o objectivo do nosso trabalho o seguimento destes pensamentos poéticos e sua plasmação na obra.

 

 

Derivaldo dos Santos (Univ. Federal do Rio Grande do Norte):

Florbela Espanca. Sob o signo da dúvida melancólica

Este trabalho focaliza a obra poética de Florbela Espanca, verificando como o sujeito lírico se move sob a experiência da dúvida em face do vivido e do indagado. Lê-se a poesia do Alentejo como um artifício da discórdia, na medida em que faz girar o sujeito lírico e a realidade circundante fora do alcance da razão consensual, dando a ver o impreciso e o múltiplo no seio da unidade. Uma linha mestra que percorre a lírica da poetisa e define a atitude básica do eu em face das muitas faces que o mundo comporta é a dúvida melancólica, convertida numa expressão cabal de perplexidade e conflito. Trata-se de um procedimento interpretativo da poesia de Florbela Espanca capaz de direcionar o sujeito na encruzilhada do tudo e do nada, do ser e do não-ser. Este avesso da unidade autêntica tem a ver com a experiência de riscos, da dança vacilante, compreendendo o incessante fluir e a mutabilidade das coisas e da vida.

 

 

 

 

 

 

Elisabeth Batista (Univ. Estadual do Mato Grosso):

Da Poesia ao conto: a itinerância criativa de Florbela Espanca

A Literatura e as artes, espaço privilegiado de representação da vida social e humana no âmbito dos países de Língua Portuguesa levam-nos ao estudo do percurso literário de autores e autoras de notável expressão no âmbito das literaturas de Língua Portuguesa, nomeadamente a autora Florbela Espanca. A referida autora é (re)conhecida pela crítica pela intensa dedicação à poesia lírica e, tal fato a inscreve no cânone literário tornando-a um marco referencial da poesia portuguesa no século XX. A autora, entretanto, a despeito de ser conhecida mundialmente pelos seus poemas, legou-nos uma coletânea de contos sob os títulos de As Máscaras do Destino e Dominó Preto, reunidos na obra intitulada Contos, organizada pelo Professor José Carlos Seabra Pereira. Assim, interessa-nos compreender como se dá o processo de transição da poesia lírica à narrativa ficcional florbeliana, entrevendo em que medida a tessitura da escrita, a memória e as experiências intersubjetivas analisadas nesta reflexão de um ângulo simultaneamente literário e sócio-existencial se inscrevem itinerância criativa da autora.

 

Evelyn Blaut Fernandes (FLUC-CAPES):

Florbela Espanca na Casa das Musas

Esta comunicação pretende reflectir sobre a transformação de Florbela Espanca em mito pessoal e em motivo literário, a relação metafórica do sujeito com a poesia, do espancamento da figura de Florbela e do próprio fazer literário ao tratamento de choque que se impõe à linguagem velada pelas musas. Para isto, proponho, em termos comparativos com a poética florbeliana, a leitura de Florbela Espanca espanca (1999), de Adília Lopes, e Florbela (1991), de Hélia Correia.

 

 

Fabio Mario da Silva (Universidade de Évora/Bolseiro FCT):

A Virgem Maria, o sagrado feminino e sua relação com Florbela Espanca

Estudiosos e leitores críticos vêm, ao longo de muitos anos, apontando o teor erótico como norteador da poesia de florbeliana. Por conseguinte, a temática da religiosidade passa quase desapercebida por sua fortuna crítica. Restando, primeiramente, um estudo do padre-crítico José Augusto Alegria, que através da obra A poetisa Florbela Espanca. O processo de uma causa, nega a Florbela Espanca e à sua obra qualquer ligação com a religião. Foi apenas com um crítico astuto como Jorge de Sena, que num texto conciso proferido em 28 janeiro de 1946, numa conferência intitulada “Florbela Espanca ou a expressão do feminino na poesia portuguesa”, conseguiu dar conta de toda a problemática que envolve a poesia florbeliana. Sena observou no soneto “Mais Alto” todo manancial arquetípico feminino que se transmuta na imagem da Virgem Maria – daquela mulher que seria capaz de conter em si mesma o bem e o mal, da que gera a vida. Florbela assim possui, além duma poesia marcadamente representativa de carga simbólica que reflete o sagrado no feminino, uma relação muito estreita com a figura de Nossa Senhora da Conceição, padroeira nacional de Portugal que lhe concedeu seu apelido e personagem sagrada presente desde a sua infância. No entanto, Florbela Espanca, enquanto cidadã portuguesa, viola as instâncias sagradas destinada às mulheres para tentar buscar a sua própria felicidade, sem a imposição dos ditames sociais, com uma vida fora do padrões, rompendo, consequentemente, a ideia de “sagrado feminino” moldada a partir da figura mariana.  O presente artigo se propõe articular todas estas ideias, focando a imagem sagrada feminina da Virgem Maria, da mãe primordial.

Feliciano José Borralho de Mira (CES – Centro de Estudos Sociais -Universidade de Coimbra):

E como hipótese  indicial, “Cor de violetas roxas…” ou a tricotomia da catarse

A matriz dos territórios vivenciais de Florbela Espanca apresenta um sentido indicial interpretativo que se multiplica em outros tantos viveres quanto as suposições analíticas. Será que a produção do sentido e a intenção da autora, ainda repousam na gaveta do antiquário, e não foram contadas senão pela arte de esconder ou de moldar na língua alheia o que ela pensava ou sentia ? Esvaziada a bandeja das estruturas significativas enunciadoras, é sugerida uma remarcação das categorias de família, política e desvio em Florbela Espanca, segundo paradigmas emergentes desta contemporaneidade. A matriz da relação da mulher com a consciência do momento tem vários caminhos contextuais, resguardada a veste das estratégias que ironicamente se afincam na dicotomia moral do bem e do mal, ou nos falsos cultivos de uma presença social ausente do espaço socioeconómico envolvente, mesmo que os disfarces recriados por rábulas públicas de vestir masculino tal desmintam, assim como a temática e os conteúdos da sua correspondência. Nas dobras da biografia dissimulada, persiste um poema de lúcida loucura no delírio Veronal, hipnótico de todas as tentações e inclinações que a tricotomia da catarse nos oferece: eu, corpo, infinito. E o desassossego libertador atinge a plenitude do sagrado porque “ser poeta é ser mais alto é ser maior” e a purificação pelo drama tem  o perfume da “cor de violetas roxas” que acompanha o ataúde, para que se cumpra  em “pó-cinza-e-nada” a redenção do inevitável.

Francine Pereira Fontainha de Carvalho (Univ. Federal do Rio de Janeiro):

Luto, melancolia e seus arquétipos: Uma análise dos sonetos de Florbela Espanca

A presente pesquisa pretende abordar os modos e manobras das expressões escriturais da melancolia, tendo por objeto as obras de Florbela Espanca – sonetos, cartas e diário – a partir das quais ensejamos demonstrar como a saudade, o mágoa, a tristeza e a dor do sujeito melancólico contaminam suas produções artístico-literárias. Procuraremos partir do dado universal para chegarmos ao aspecto particular da dor e da mágoa que rubricaram a vida da referida poeta, a qual possui sonetos assumidamente melancólicos – a julgar pelo título da obra por nós privilegiada – Livro de Mágoas. Intentaremos demonstrar que, no caso da poeta, a psiché portuguesa parece verticalizar-se na escrita poética, acentuando as marcas melancólicas conforme os desdobramentos de sua existência, uma vez que ao nos debruçarmos sobre as produções de Florbela, podemos constatar que a saudade, a solidão, e a mágoa, tão característicos do povo português, estão presentes em sua obra e desvelam-se numa escrita rasurada pelas dores físicas e psíquicas. A escrita da poeta traduz dor e sofrimento de uma forma extremamente pontual e pungente, pois, através de seus versos e prosa, podemos acompanhar o percurso da dor e do dilaceramento presentes em sua escrita. A mágoa, presente em seu texto e em sua existência, faz-se elemento primordial de seus poemas, tal qual a dor que a devasta intensamente, uma vez que a poeta afirma ter, inclusive, bebido a mágoa no seio de sua mãe: “A minha pobre Mãe tão branca e fria Deu-me a beber a Mágoa no seu leite.” Interessa-nos, outrossim, refletir acerca da compreensão da palavra poética como impossibilidade de expressão e comunicação da verdade e dos sentimentos, conforme figura nos poemas da poeta. Nesse sentido, pretendemos surpreender na poética florbeliana a interdição da palavra como desvelamento da dor e da mágoa, entendendo-se esta como sintoma da incompreensão e incomunicabilidade com o outro, a ponto da poeta afirmar-se como estrangeira e exilada do país onde vive, do mundo e da vida: “Já me perdi! De um estranho país que nunca vi. Sou neste mundo imenso a exilada. Tanto tenho aprendido e nada sei”. Finalmente, trataremos das figurações da morte, presentes na obra de Florbela Espanca, a qual ansiou pelo momento de se ver desligada da vida, não mais presa a uma vida que a assoberbada de dor e de descontentamento. Sua obra nos comunica o desejo de núpcias com a morte – vista pela poeta como a salvadora, a redentora – em muitos de seus versos e cartas: “Deixai entrar a morte, a Iluminada, A que vem pra mim, pra me levar. Abri todas as portas par em par Como asas a bater em revoada”. O tema no suicídio, tantas vezes contemplado na escrita da poeta, merece igual atenção em nossa pesquisa, já que em inúmeras ocasião Florbela demonstrou e, inclusive, defendeu o ato como um gesto de coragem, a despeito da opinião da sociedade que interpretava a ação como um ato de extrema covardia.

Gonçalo Piolti Cholant (Univ. de Coimbra): 

O diário do último ano de Florbela Espanca e a escrita feminina: a feminina desmemória

Florbela Espanca foi e ainda é uma das mais interessantes poetisas da literatura portuguesa. Sua contribuição mais relevante foram seus sonetos, onde cantava o amor, a dor e a condição feminina com grande destreza. Florbela também se aventurou em contos e um diário. A escrita deste revela-nos mais um viés por onde podemos tentar chegar mais perto daquela mulher que virou musa, partindo da posição de escritora para a de personagem de sua própria existência. Este artigo visa trabalhar com a questão da escrita de mulheres no diário do último ano de Florbela Espanca. Proponho uma elaboração sobre a escrita feminina no diário, tendo como ponto de partida a teoria de Lúcia Castello-Branco, que introduz o conceito da “feminina desmemória”. Faz-se necessária então uma abordagem que compreende a teoria da escrita de diários, uma prática que por ser considerada como um tipo de literatura menor, maciçamente feminina, por muitos anos passou despercebida, para não chamá-la de excluída, do campo da investigação. Toda escrita é permeada por intenções, nuances que ficam por debaixo e por entre as linhas que compõe o tecido textual, os escritos relacionados à memória não são diferentes. A análise deste tipo de texto se faz importante devido à riqueza de informações que podem ser encontradas, revelando detalhes que transitam entre o privado e o público, a ficção e a realidade.

José Bettencourt da Câmara (Univ. de Évora):

Charneca em flor – de Florbela a Fernando Lopes Graça

Entre a que é a mais vasta produção para canto e piano de um compositor português, a de Fernando Lopes Graça, entre os diversos ciclos de canções que nesse corpus se destacam, não é decerto por acaso que deparamos com um ciclo composto a partir de poemas de Florbela Espanca. O compositor que tomou como um dos objectivos do seu esforço criador o desenvolvimento da canção com piano, do Lied em língua portuguesa, que para isso se propôs, algo sistematicamente, a própria história da poesia portuguesa, em alguns dos seus melhores autores, em muitos dos seus textos mais representativos, podia não haver incluído Florbela Espanca na sua obra para canto e piano. Deu-se motivos para isso, seguramente. Tentaremos, sem incorrer em riscos de especulação, percepcionar os factores que levaram Lopes Graça a extrair do livro mais conhecido de Florbela Espanca quatro sonetos sobre os quais compôs o ciclo a que deu o título da obra literária de origem: Charneca em flor. Justifica-se a explicitação prévia de algum aspecto de ordem negativa, isto é, que aqui não pareça haver pesado. Não temos notícia de que na sua juventude Lopes Graça tenha ainda conhecido Florbela Espanca, aspecto pessoal a que muitas vezes não foram alheias as opções poéticas do compositor (João José Cochofel, Mário Cesariny de Vasconcellos, José Gomes Ferreira, José Saramago…). Também não pesou aqui a proximidade ideológica entre músico e poetisa, visto o irredutível individualismo desta última, a poética arreigadamente centrada no eu, a que, em todo o caso, Lopes Graça não terá sido insensível, por via certamente da dimensão erótica da obra de Florbela. Será já de considerar o facto de, no que respeita a uma abertura à transcendência, não parecer essa obra, geralmente, ir além de um anelo panteísta? Considerando outros cometimentos do compositor (os ciclos sobre Camões e Antero sobretudo, mas ainda sobre José Gomes Ferreira), pode também ter aqui interferido, mesmo que sem grande consciência por parte do músico (que a tinha geralmente), o interesse pela forma do soneto. Contudo, deve ter sido antes de mais o amor do músico à terra alentejana, à paisagem que vividamente Florbela Espanca transfere para a palavra poética, que o terá compelido à obra da poetisa. Parecem apontar nesse sentido os quatro sonetos escolhidos para o ciclo: Charneca em flor, Passeio ao campo, Árvores do Alentejo e Pobre de Cristo. Num caso de análise de um género que em musicologia se designa como “músico-literário”, não deixaremos de atentar ainda em como é acolhida a voz do poeta pela do compositor, como a palavra não cantada – que para o músico é já, de algum modo, música – se transforma em música. Consegue a música, outra linguagem, dizer o que, ainda silêncio na poesia, todavia a habita? Consegue-o, de qualquer modo, no caso presente?

José Carlos de Seabra Pereira (Univ. de Coimbra):

Ser de desejo e desejo de ser em Florbela

 

A poética vitalista de Florbela e os riscos de leitura redutora da sua obra. A poesia de “viver segundo a carne” e a consciência de si. Razões existenciais e “razão vital” no devir da energia amorosa e criativa. A ânsia inconsumável do desejo de ser nos embates ambivalentes com o tempo e a morte.

 

 

José Manuel de Vasconcelos (Associação Portuguesa de Escritores):

As fábulas de Florbela

Começando por debater a questão da fábula em literatura, e definindo um entendimento contemporâneo do conceito, a comunicação pretende analisar o impulso literário de Florbela Espanca e as suas diversas manifestações, tendo por base uma atitude caracterizada como fabulística, por estar fortemente relacionada, de forma naturalmente muito complexa e dissimulada, com um universo de fábulas e visões ínsitas em contos de fadas, em que terá um papel primordial, mesmo matricial, «A gata borralheira». Numa viagem pela obra da autora, procurar-se-ão as diversas manifestações que fundamentam esta abordagem, e a ilustram.

Leda Marana Bim (Univ. de Hamburgo):

A representação da masculinidade nos contos O Dominó Preto e O Crime do Pinhal do Cego

Poetisa e prosista, Florbela Espanca é considerada um dos símbolos femininos da Literatura Portuguesa e merece destaque pelo tratamento de temas como o amor, a dor, a sensualidade, a solidão e morte. Há diversas contribuições nos estudos literários voltadas para a obra da poetisa e sua respectiva relação com a construção da feminilidade e subjetividade, particularmente em seus poemas. Todavia há poucas discussões referentes à masculinidade nas obras de Florbela Espanca, principalmente ao que diz respeito a prosa, através da perspectiva dos Estudos de Gênero, que abrangem tanto as construções sociais femininas quanto as masculinas em um determinado contexto social e cultural. Sendo assim, este trabalho propõe, a partir da leitura dos contos O dominó preto e O crime do Pinhal do Cego, a análise das figuras masculinas como exemplos de construção de masculinidade e a relação das mesmas com a temática da morte e do amor. A partir disto, pretende-se refletir como essas personagens nos contos selecionados por vezes não correspondem a determinados padrões normativos de virilidade, seja devido à sua aparência física ou às atitudes tomadas perante as mulheres, prevalecendo assim a imagem do mito heróico masculino.

Maria do Carmo Pinheiro Silva Cardoso Mendes (Univ. do Minho):

O lugar de Florbela Espanca na literatura portuguesa contemporânea

Reconhecida como a principal poetisa lírica alentejana, Florbela Espanca é também considerada uma precursora, quer do movimento feminista em Portugal, quer da poesia lírica contemporânea. A comunicação tem como propósitos principais: 1) identificar as marcas da biografia florbeliana que representam a defesa da condição feminina e o questionamento do papel tradicionalmente atribuído à mulher na sociedade portuguesa; 2) provar que não só a biografia mas também o trajecto literário de Florbela marcaram vários escritores portugueses que mitificam os dois aspectos; 3) comentar textos de Manuel da Fonseca, Fernando Pessoa, José Régio, Agustina Bessa Luís e Natália Correia reveladores da exaltação da vida e da obra poética de Florbela Espanca.

 

Maria Lúcia Dal Farra (Univ. Federal de Sergipe/CNPq):

Inefável Florbela!

Florbela não se cansa de nos surpreender. Nas suas cartas de amor (até dezembro de 2008 inéditas, e dirigidas a seu segundo marido, o alferes da Guarda Nacional Republicana – António Marques Guimarães), há um rosto refletido em muitos espelhos desiguais, e que vai inaugurando novas e inesperadas versões dessa mulher. Ao mesmo tempo, outras luzes são lançadas sobre os poemas compostos durante esse período contido entre 1920 e 1925.

 

 

Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento (Univ. do Rio Grande):

O eu e o outro: auto-representações no diário e na epistolografia do último ano

 

O diário e o gênero epistolar são práticas de escrituras bastante comuns entre mulheres escritoras e artistas. Considerados inicialmente como escritas marginais – como o exemplo do Diário de Maria Bashkirtseff (1854-1884) e de suas cartas –, foram tomados pelas mulheres, em especial, como experiência de linguagem, caracterizados pela liberdade, pelo caráter mais subjetivo, confessional e íntimo, e de autoconhecimento, ao invés de serem simples relatos do cotidiano da realidade vivida. São gêneros em que o realismo abriu espaço para a subjetividade e a arte, mesclando-se e construindo realidades individuais dos sujeitos que expressavam suas angústias particulares que insurgiam, muitas vezes, contra sua condição feminina na sociedade. Visto a significância que esse tipo de prática de linguagem possui para a criação poética de Florbela Espanca, e de como se funde com tal, o presente trabalho tem o objetivo de identificar e analisar como a poetisa, no seu Diário e na epistolografia do último ano de vida, construiu as suas múltiplas auto-representações, todas fragmentações do seu “eu”. São representações femininas e paradoxais que se manifestam entre o equilíbrio e desequilíbrio, Eros e Tânatos, um “eu” plural que anseia em descobrir-se, em expressar-se livre das repressões morais e sociais, em seu desmedido panteísmo, e que acaba por exilar-se em si, na tentativa de evasão da realidade.

Renata Bomfim (Univ. Federal do Espírito Santo):

Poética e política: diálogos intercontinentais entre Florbela Espanca e Rúben Darío

A poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930) e o poeta nicaraguense Rúben Darío (1867-1915) são personalidades literárias cuja relevância das obras e legado de resistência aos discursos autoritários, via poesia, têm despertado na contemporaneidade o interesse, tanto do público leitor, quanto de pesquisadores. Embora tenham nascido em continentes diferentes e cumprido percursos literários singulares, Florbela e Darío compartilharam da mesma modernidade, tempos de autodestruição criativa, aspecto que pode ser observado no desejo de ambos em romper com a tradição e com o status quo. Se a poética de Florbela Espanca transgrediu com o ideário feminino de sua época, encontraremos na poética de Rúben Darío uma ruptura com o cânone literário, que contribuirá para com a renovação das letras hispano-americanas e marcará o surgimento do primeiro movimento genuinamente hispano-americano, o Modernismo. A relação entre as poéticas de Florbela Espanca e de Rúben Darío são, ainda, pouco estudadas, o que nos causa estranheza, pois o conhecimento da obra deste poeta é relevante para uma compreensão da lírica hispano-americana e, no caso em questão, para o entendimento da obra Charneca em Flor, de Florbela. Proponho, por meio deste estudo que denominei Poética e política: diálogos intercontinentais entre Florbela Espanca e Rúben Darío, refletir de que forma a obra de Florbela Espanca dialoga com a obra de Rúben Darío, bem como, analisar possíveis motivações que fizeram com que ambos fossem acusados pela crítica, durante muito tempo, de não terem envolvimento político. Mas, se a “uma sociedade dividida corresponde uma poesia em rebelião”, como destacou Octávio Paz, é possível observarmos nas poéticas de Florbela e de Darío formas singulares de engajamento que põem em xeque essa alienação. Dois biomas diferentes que se complementam sob a filosofia de Eros, a selva sagrada de Rúben Darío e a Charneca rude de Florbela Espanca, um encontro entre a “princesa das quimeras” e o “príncipe das letras castelhanas”, interlocução que, a nosso ver, demanda investigação.

Ricardo Marques Martins (Univ. Estadual Paulista):

Florbela e Botto: Canções Trocando Olhares

As leituras críticas da obra de Florbela Espanca (1894-1930) privilegiaram abordagens que – pelo plano da expressão ou pelo plano do conteúdo – consideravam sua produção poética um caso de exceção, ou mesmo de marginalização, no panorama modernista das primeiras décadas do século XX. Por esse viés, a marginalidade atribuída aos poemas de Florbela em relação aos seus contemporâneos modernistas de Orpheu e de presença dever-se-ia tanto à leitura que a vinculava à tradição artística do final do século XIX, quanto àquela que a restringia como escrita de autoria feminina em um contexto ainda de predomínio intelectual e artístico masculino. Ao optarmos pela perspectiva crítica sugerida e adotada pela investigadora Renata S. Junqueira (2000), em seu ensaio “Florbela e Almada” – que insere e reavalia a produção florbeliana no cenário português por meio da moderna configuração de uma “estética da teatralidade” –, a presente comunicação busca estabelecer diálogo entre a produção de Florbela e a de seu contemporâneo António Botto (1897-1959). Por meio da análise de poemas e de fragmentos dos dois poetas, pretende-se ressaltar identificações e singularidades – formais e temáticas – reveladoras de aspectos da modernidade na produção de ambos os autores, especialmente no que diz respeito ao aproveitamento (e subversão) das formas tradicionais, à encenação do drama amoroso e à concepção trágica do fado.

 

 

Sofia Alexandra Ferreira da Silva Carvalho (Univ. de Lisboa):

A Incorruptibilidade do Tempo Mítico: tipologias estético-metafísicas de Florbela Espanca e Teixeira de Pascoaes

 

Tratar o tema da incorruptibilidade do tempo mítico em dois percursos poético-anagógicos, epidermicamente descoincidentes, é apontar para o poder transmutacional da criação e delinear a matriz estético-metafísica do des-encontro trágico de si. No chamamento íntimo da nevralgia do Sentido, quando a Vida avoca as nervuras do verbo poético, esbatem-se as questões de género ou constrangimentos de pertença e espiga-se, num ininterrupto dilapidar da subjectividade, a descrição daquele abalo integral da consciência que projecta o humano para a irredutível clivagem entre o que é o que deveria ser. Em Bela assistimos a um combate feérico entre as paisagens de uma memória triste e saudosa, ornada a ímpetos narcísicos de spleen sensualista, e os horizontes de uma intimidade panvirginal, resíduo mitológico de um contínuo processo de alheamento da ilusão. Em Pascoaes, estanciamos as forças criadoras da lembrança e da esperança, do sonho divino e humano num total furto à delimitação fenoménica, realizado a partir de uma metanoia interior de esvaziamento que se torna multiplicação de seres através da idealização mitológica. Nas intersecções estético-metafísicas destas duas arquitecturais poéticas, a intimidade não se reduz ao espaço ontológico da interioridade individual e narcísica, cinge antes os liminares cósmicos da lembrança desse ponto gravitacional de coincidência, ânsia e superação dos binómios humano-divino, aparição/aparência, dentro/fora, sonho/realidade. A figura mitológica supera a persona e converte a Vida numa metafísica de aderência ao mundo, numa atmosfera sem variações, como uma noite de luar em Bela ou um crepúsculo remoto em Pascoaes, ambas com anseio de eternidade. Na primeira, os fundamentos trágicos da Vida, e a sua inelutável sombra tanatológica, dilatam a fé num processo de libertação do eu no mais alto grau, abjurando o capricho e a veleidade para se abeirar daquela hora absoluta donde provém estrema a plenitude da alma. No segundo, congrega-se a hora apocalíptica de todos os tempos sem Tempo, a perfeita aliança do regresso à Infância, um retorno ao ser ingénuo que manifesta, num presente sem mediações, o Imanifestado. As tipologias estético-metafísicas do luar e do crepúsculo amplificam a condição trágica do ser humano que, fendido de dor e medo, se encontra propenso para a luz. Ao contemplar a árida e fastidiosa existência, os nossos Autores alimentam as aparições mitogénicas de um outro Tempo e Idade, refugos de uma realidade onírica, inteira e inclusiva. Num processo metamórfico de si e do mundo prodigaliza-se a fugacidade e a evanescência da existência individuada, o tempo mergulha na ausência e as horas repousam em contínua expansão. Regressa-se, pela e na consciência, ao tempo imemorial, imóvel, fora das representações espácio-temporais. Inversão ou conversão totais onde profundidade e superfície, horizontalidade e verticalidade se encontram reconciliadas. Inaugura-se uma nova era, uma nova idade onde a vontade e a imaginação, a memória e o sonho consagram ao sujeito poético uma dinâmica transpessoal que é, a um tempo, múltipla e des-integradora e, a outro, suspensão temporal de um percurso mitogénico que permite uma renovada concepção e inserção no Mundo. Em Bela e Pascoaes, o projecto poético não é mero devaneio especulativo, mas resgate do ser na sua dimensão mais íntima e universal. Os não poucos resíduos metafísicos da criação poética impulsionam a redescoberta do princípio arcaico, imbricado no vínculo ontológico que transpõe a tradição e o futuro. Há, efectivamente, no ser humano uma instância anterior, arquetípica, inicial ou sideral onde a temporalidade proteica e germinal, ora em tom de confissão quimérica e cândida, ora em matizes destemidas e desapiedadas, nos convoca para um processo de ressurgimento cosmogónico.

 

 

Suilei Monteiro Giavara (Univ. Estadual Paulista – Assis):

Florbela Espanca e Judith Teixeira: uma história em letras miúdas

A sociedade portuguesa e também a crítica literária do começo do século XX – época em que Florbela Espanca (1894 – 1930) e Judith Teixeira (1880 – 1959) escreveram suas obras – ainda mantinham traços misóginos bastante perceptíveis. De fato, as obras das referidas poetisas são alvo de críticas bastante contundentes, uma vez que deixam transparecer uma imagem do feminino que destoa dos padrões aceitáveis para uma sociedade, na época, ainda sob forte influência da igreja católica. Por isso o objetivo deste texto é enfocar a temática erótica adotada por ambas por acreditar que este, além de ser o diferencial de sua linguagem poética é também o motivo das contestações sofridas por elas.